O Evangelho e a Ética Social
“Não
atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é
dos outros” (Filipenses 2.4)
É realmente espetacular como textos escritos há milênios conseguem
permanecer atuais. E é esse um dos aspectos fundamentais que colocam a Bíblia
em um patamar acima de qualquer outra obra:: ela não se prende às amarras
temporais que normalmente carimbam como ‘ultrapassado’ qualquer compêndio que
trate de aspectos sócio-econômicos contemporâneos.
Mesmo autores clássicos incensados por gerações a fio, vivos estivessem,
teriam que testemunhar a atualização, correção e, em certos casos o completo
desuso de suas obras-primas, como, por exemplo, Marx, Maquiavel e Adam Smith.
Mais, a Palavra de Deus não só permanece atual como parece imune a todos
os ataques desferidos contra ela dia após dia pelos exércitos da liberalidade e
do relativismo, embevecidos pela contradição de uma crítica irracionalmente
sutil que, usando a máscara do progresso e do desenvolvimento, trazem em suas
entranhas um desconforto brutal em ter que conviver com a verdade traduzida
pela vontade de Deus.
Vejamos
especificamente o versículo acima citado. Foi escrito no primeiro século da Era Cristã. Poderia ter sido escrito
ontem. Poderia estar estampando camisetas em protestos pacíficos contra os maus
tratos que a população recebe de seus governantes. Ou mesmo para reclamar de
vizinhos barulhentos ou de quem joga lixo no meio da rua.
Em
palavras claras e objetivas, o apóstolo diz que, ao mesmo tempo em que cuidamos
de nossos interesses, devemos entender que os demais igualmente possuem os
seus, em uma afirmação que ganha eco popular lendo-se nas entrelinhas que ‘o
meu direito começa quando termina o do próximo’, e vice-versa.
Não fala nada estranho ao coração do Deus Criador, que já havia dito
ainda no deserto algo que aponta para isso “(…);
mas amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv.19.18). Jesus reafirma a
expressão em Mateus 22.39. Ou seja, devo tratar como eu gostaria que me
tratassem. Devo respeitar o que não é meu como se fosse. E isso é um ponto fundamental naquilo que
gostaríamos de chamar de civilização.
Vejamos,
por exemplo, o caso dos governantes de uma nação. O modo como
eles tratam as três questões mais importantes de uma sociedade, a saber,
educação, saúde e segurança, exatamente nessa ordem.
Suas
preocupações imediatas (“O que é propriamente seu”) são – redundância –
imediatamente sanadas assim que chegam ao poder. Carro novo, dependendo do
cargo, blindado, casa nova, escola nova para os filhos e plano de saúde com
cobertura internacional. E então, eis a questão. Uma vez refestelados em sua
nova zona de conforto o “O que é dos outros” cai em esquecimento. Nesse caso,
“O que é dos outros” se trata da saúde dos outros, da educação dos outros, da
segurança dos outros.
Os
governantes da nação não estão sinceramente preocupados com a nação. Pelo menos
não desse lado do Equador. Sua preocupação mor é manter-se em evidência no
período certo com vistas à próxima eleição, para assim continuar com “Propriamente
seu” em alto nível. Certa vez o Senador Cristovam Buarque achou de propor que
todos aqueles que fossem eleitos matriculassem seus filhos em escola pública.
Um delírio indiretamente remetido a Thomas Moore que, de tão onírico, talvez
fosse a única saída para a nossa destruída, humilhada e fragmentada educação.
Que tal se estendêssemos a idéia para outros setores?
E
se todos os políticos dependessem de defensores públicos para que seus
processos tivessem seus andamentos acelerados? Será que teríamos tão poucos
defensores públicos para um tão grande número de processos parados por falta de
mão-de-obra disponível?
E
se nossas autoridades tivessem que usar a rede pública de saúde, o inefável
SUS? Será que teríamos ou não hospitais equipados com o mínimo necessário para
a realização dos exames mais básicos, remédios disponíveis e médicos de
plantão?
E esse é o problema. Um
problema que mescla cultura com impunidade. Sem que saibamos exatamente quem
veio primeiro, mas tendo certeza de que um complementa o outro. A idéia de que
posso manipular a opinião pública para me manter no poder é facilmente
alicerçada pela falta de conhecimento político-social de grande parte da
população, originada na disfarçada – porém bem-sucedida – política de não
deixar que a população tenha acesso a uma educação de qualidade. O que faz com
que a população, ignorante de seus direitos ou poderes, por assim dizer, se
mantenha alienada ao processo, satisfazendo-se com migalhas que lhe são
atiradas do alto dos gabinetes acarpetados da Capital Federal.
Ela
– a massa – não se importa se a pessoa que ela colocou no poder não se preocupa
com ela. E os que estão no poder sabem disso, e trabalham para que tudo
continue assim.
Atentar para o que é dos outros, segundo Paulo, está inserido no contexto
do abrir mão algo menor para um bem maior. No caso, segue o apóstolo, Jesus
Cristo abre mão de sua realeza divina em prol de uma obra sem precedentes: a
salvação da humanidade. Executado o intento, o sacrifício mostra-se redentor.
Ele –Jesus Cristo – é revelado Senhor, e a ele toda honra é devida.
Eis
a questão. Quem vai se sacrificar por um bem maior se é mais fácil se fazer de
cego e surdo?
De
um modo geral, a ética do Evangelho não se aplica somente às autoridades
constituídas. Ela aplica-se a todos os que aspiram viver uma sociedade
civilizada. Em países desenvolvidos deixar as fezes do cachorro na calçada gera
multa. E por quê? Porque alguém (o ‘outro’) pode passar e pisar. Se o dono do
animal quiser deixar sua casa abarrotada de fezes de cachorro é problema dele,
mas quando isso se torna um problema para o próximo, deve ter uma atitude
civilizada. Civilização implica sociedade organizada, leis igualitárias,
liberdade de expressão. Elementos que aos poucos estão sendo colocados em risco
a cada dia em que o mundo fica mais moderno. Parece um paradoxo. E é.
No
final a Bíblia estava certa. Sempre esteve. Sempre estará.
Só
seremos, afinal, civilizadamente éticos, quando atentarmos que existe vida
inteligente fora de nosso quintal, e que precisa de respeito. Afinal, não é
isso que esperamos do outro lado do muro?
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